Este registo de memórias é feito com uma diminuta porção das minhas magníficas recordações da cidade de Leiria, de todas as suas gentes e da sua riquíssima cultura sensível de humanidades, de que fui amplamente beneficiário.
Também quero prestar homenagem, que não ficará por aqui, a todos os portadores da filosofia espiritualista que ali conheci, entre eles os mais dedicados militantes e organizações espíritas, ali activas, pelo menos desde Maio de 1917, o antigo Centro Espírita de Leiria, encerrado pelo fascismo dogmático de 28 de Maio de 1926, e da Associação Espírita de Leiria, ali reerguida depois de 25 de Abril de 1974.

– As raízes da cultura espírita na minha família;
– O Centro Espírita de Leiria, fundado em 2 de Maio de 1917;
– Augusta Pereira Brites; contactos com a Dª Adolfina Carriço Portugal e trabalho no Centro Espírita de Leiria;
– A intolerância dos tempos passados;
– A minhas percepções e primeiros entendimentos do fenómeno espírita; fenómenos benévolos e experiências dolorosas; O auxílio da Dª Adolfina e os apoios de minha avó Cristina e tia Augusta;
– A Senhora Dª Adolfina Carriço; memória breve e longínqua;
– A minha amizade e contactos com o Senhor Delfim Luís Pires;– memórias de Leiria; o Senhor Vasconcelos (Joaquim Inácio Zapata de Vasconcelos).
Nota de lembrança muito agradecida inserida na nossa tradução de “O Livro dos Espíritos”, pelo imenso valor que teve para nós a mensagem que nos deixou:
Saudações espirituais, com votos da mais intensa LUZ para o nosso querido amigo Joaquim Inácio Zapata de Vasconcelos que, por iniciativa generosa, nos entregou com entusiasmo espontâneo uma nova e maravilhosa imagem do mundo e da vida.
Já lá vão uns bons sessenta anos, passeando à noite, ao longo das margens do Rio Lis.
JCB/MCB
As raízes da cultura espírita na minha família derivam das iniciativas de contactos estabelecidos pela minha avó paterna Cristina Pereira Brites (n. 1884) e suas duas irmãs Maria Pereira Brites (um pouco mais velha) e Augusta Pereira Brites (n. 1888). Eram filhas de Joaquina de Jesus Brites, da Martinela, freguesia do Arrabal, e de Paulino Pereira, da Abadia, freguesia de Cortes.
Foram eles que fundaram a casa situada na Martinela onde viveu até ao seu falecimento recente, uma filha de Augusta, Celeste do Rosário Brites Soares Pinto, e onde fundaram um pequeno negócio, na Ribeira da Martinela junto do Padrão, na estrada que vai de Tomar a Leiria (EN. 113), no tempo em que ainda não havia carros e o local era paragem para muitos viajantes, apenas a 7 km de Leiria.
Os maridos das duas irmãs de Augusta, Maria (com três filhos muito pequenos) e Cristina (à espera de um menino que viria a ser meu pai, José Pereira da Costa Brites) emigraram para Moçambique tendo, por grande desgraça, falecido ambos por enfermidades ali contraídas.
Traumatizadas por esse facto e desejosas de se aproximarem da vida do Além, onde acreditavam encontrar-se, bem vivos, os seus amados maridos, estabeleceram contactos em Leiria (nos fins dos anos 20 do século passado) onde facilmente se integraram na comunidade espírita, dado que eram – apesar de gente modesta – pessoas de fino trato, com educação ainda assim preciosa nesse tempo. A minha tia Maria tinha feito a quarta classe e a minha avó Cristina tinha estudado dois anos em Moçambique num colégio de freiras, por ali ter vivido em companhia de seu pai.

– Augusta Pereira Brites; contactos com a Dª Adolfina Carriço Portugal e trabalho no Centro Espírita de Leiria;
A minha tia Augusta Pereira Brites, no dizer de sua filha Celeste do Rosário, era pessoa “visitada pelos espíritos”. Tinha uma elevada receptividade e possuía uma fina sensibilidade literária. Sob a orientação doutrinária da Senhora Dª Adolfina Carriço Portugal, com quem manteve contactos de confiança e proximidade, exerceu as suas capacidades mediúnicas no Centro Espírita de Leiria, situado perto do Terreiro, como esclareceu a minha prima Celeste. Em criança, acompanhava a mãe e as tias a essas sessões, tendo a ideia da existência de um salão espaçoso onde decorriam as sessões de doutrinação e encontros vários. Lembra-se de ser acarinhada pelo professor Nicolau Ferreira, que mais tarde – na sua adolescência – colocou à disposição dela a sua bem nutrida biblioteca, por ser muito interessada pela leitura.
J. Nicolau Ferreira, entre outras funções e actividades, foi director de “O Sol do Porvir”, belíssimo e bem documentado jornal publicado durante bom número de anos pelo Centro Espírita de Leiria, que teve largo número de leitores e assinantes, espalhados por Portugal e pelo mundo, como pode ser documentado.
Lembrava-se Celeste, e deu-me confirmação do facto de que era a Dª. Adolfina Carriço Portugal que dirigia os trabalhos e era a médium superior. Ouvia as mensagens do além e transmitia-as.
Num maço de antigos papéis que a minha mãe guardou de forma reservada, disponho de vários documentos de alguma importância evocativa, um dos quais contém alusões específica à “irmã Adolfina” e ao “irmão Pinto” (muito certamente Joaquim Mateus Ramos Pinto) e que é uma cópia escrita pelo próprio punho de minha mãe, de uma comunicação de 26 de Janeiro de 1929, feita ao Grupo Luz da Verdade, no qual participaria minha avó e minhas tias.
A intolerância dogmática dos tempos passados
A tia Augusta, integrando um grupo familiar, depois da proibição governamental e do encerramento do Centro Espírita de Leiria, passou a usar os seus dotes mediúnicos, fazendo uso deles para ajudar pessoas que a procuravam. Estes auxílios, como é norma da doutrina espírita, eram sempre dados de forma gratuita.
As irmãs Maria e Cristina que viviam em Leiria não tiveram problemas, dado que havia uma maior tolerância mas na Martinela o meio era hostil, tanto por parte dos padres católicos como em geral das pessoas a eles afectas.
Tiveram de deixar de frequentar a Igreja Católica que não as admitia. A Celeste e a Mãe foram postas de parte e até o telhado lhe apedrejavam de noite, com grande transtorno que sofreram, sendo como eram uma mulher só e uma filha ainda criança, que tinham ficado ali devido à exploração do pequeno negócio que haviam herdado de seus pais.
As miúdas, na escola, diziam à minha prima Celeste: “Tu quando morreres vais para o Inferno, com a tua Mãe, porque vocês falam com o diabo”. Sofreram muito e a Celeste decidiu afastar-se do espiritismo.
Ainda criança, Celeste do Rosário decidiu candidatar-se à primeira comunhão e declarou ao padre da freguesia do Arrabal que era essa a sua vontade. Narra igualmente o episódio da conversa havida com ele, a entrega do livro com a teoria da catequese e o dia dessa comunhão, em que sua mãe a acompanhou à igreja e a partir do qual passou a ir à missa com ela. Comenta a propósito não ter sido a mãe que a levou à missa, e sim ela que levou a própria mãe.
Mas as dificuldades e barreiras da intolerância duraram tanto que, quando a minha avó Cristina faleceu na Martinela, já em Janeiro de 1968, nenhum padre quis acompanhar o funeral, apesar da solicitação insistente da nora Maria de Lurdes Brites, minha mãe. Nessa mesma altura foi a minha prima Celeste que teve a iniciativa de se substituir ao padre, fazendo as orações de encomendação da alma da defunta conforme eu próprio mantenho em memória viva e sensibilizada.

A menção que faço da minha tia Augusta Pereira Brites não tem por objectivo glorificá-la como personalidade ligada ao antigo Centro Espírita de Leiria.
O que faz justiça, sim, é a um grande número de pessoas simples, que – de forma altamente modesta e abnegada – foram alimentando a chama de uma cultura e de uma percepção das realidades de aquém e de além vida, que dessa forma foram atravessando o tempo e a sociedade em que vivemos, como facho de luz apontado a um futuro esclarecido e repleto de justas esperanças.
Mais me ocorre certificar, pelo conhecimento que tenho das adversidades que enfrentou e das muitas dores que padeceu – no corpo e no espírito – que tais pessoas arderam nas chamas de uma inquietação sem refrigérios de paz, tolerância e sem o devido apoio da sociedade que as rodeava.
As minhas preces, ainda hoje se elevam em preito de gratidão e memória que tenho da sua abnegada solidão, de que fui conhecedor ainda em sua vida, e permanece nas recordações da filha Celeste, muito recentemente falecida, já com 93 anos de idade, e que tão elegantemente exprime nas suas palavras ditas e na sua vasta obra escrita, por ter herdado de sua mãe um cristalino talento poético e um invulgar bom gosto literário.

As minhas percepções e primeiros entendimentos do fenómeno espírita; fenómenos benévolos e experiências dolorosas; o auxílio da Dª Adolfina Carriço e os apoios de minha avó Cristina e tia Augusta;
Uma fase marcante na minha própria assimilação intuitiva das realidades da vida dos espíritos teve lugar entre os meus sete e nove anos, logo após o falecimento de meu pai, no dia 15 de Dezembro de 1949, por desastre de automóvel, por terem ocorrido comigo alguns episódios de hipersensibilidade.
Tinha-se dado com a minha mãe, por essa altura, o mesmo fenómeno que se havia passado com a sua sogra Cristina e tia Augusta (por afinidade): um desejo de aproximação do Além. Conservo dessa altura em meu poder, escrito pelo próprio punho de minha Mãe, o texto de uma comunicação espírita efectuada por intermédio dos dotes mediúnicos da minha tia Augusta, datado de 7 de Fevereiro de 1950 e que reputo – pela claridade da linguagem e pela contida elaboração das ideias – um documento de preciosidade espiritual.
Os fenómenos por que passei a que acima aludo foram de vária ordem, alguns de carácter benévolo (e até inspirador), mas outros foram de tipo acentuadamente negativo. Aqueles que eram de tipo benfazejo fazem parte de um grupo que eu chamo as minhas “memórias do céu”. Ocorriam quando eu estava acordado, e surgiam – teria eu cerca de 5 anos, ainda era vivo meu pai – como visões de paisagens, cores, nuvens e horizontes abertos por sobre a vastidão do “céu”. O disparador dessas visões era a contemplação de qualquer imagem ou figura que tivesse cores ou sugestões figurativas de certo tipo.
Quando eu folheava uma qualquer revista, e a minha visão captava uma dessas imagens, sentia abrir-se perante o meu olhar como um “prolongamento”, ou uma amplificação de horizontes sugestivos que eu aceitava com vaga admiração a que a frescura da infância tornava quase natural, mas que comunicava uma certa vertigem.
Há um termo na pintura (que vim a praticar mais tarde) ou na poesia – o das “paisagens interiores” – que, tenha o sentido que tiver para quem a usa, ficou – no que me toca – para sempre ligado a essa vertigem feita de luz, espaço coroado de nuvens coloridas que abrem para a altitude sem margens, nem chão, num cenário que é um convite ao voo, infinito além.
Quanto às minhas vivências negativas, só num documento específico para esse efeito, dada a sua complexidade e consequências respectivas.
Nessa altura, foi a Senhora Dona Adolfina Carriço, solicitada por intermédio de minha avó Cristina e de minha tia Augusta, que exerceu o seu ministério espiritual em minha defesa e aconselhamento
Foram também preciosos os ensinamentos carinhosos de minha avó Cristina e de minha tia Augusta, que me ensinaram a aplicar a vontade, a exercer o direito de recusa da abordagem dos espíritos que frequentemente me abordavam mediunicamente.
Esse sentimento experimentei eu ainda, de quando em vez, até à minha adolescência, em episódios cada vez mais espaçados, de uma certa “distracção” que conduzia à vulnerabilidade.
A idade adulta varreu (ou não…) o acesso a essa angústia. Julgo que alguma coisa porventura ficou e que persiste em mim, algures, em espaços de inquietação da mente objectiva e subjectiva.
A Senhora Dª Adolfina Carriço; memória breve e longínqua;
Da Senhora Dona Adolfina, a cuja presença fui levado, com menos de dez anos, na companhia de minha mãe, à sua casa na Rua Comandante João Belo, guardo uma memória cheia de respeito e grande mistério.
Era uma pessoa por cuja fisionomia e por cujas palavras não passava a mínima aragem de frivolidade ou de alegria leve. Era duma serenidade grave, interiorizada e – nos breves encontros que me foi dado ter com ela, em sua casa ou em raras abordagens na companhia de minha mãe, recolhi a percepção de que carregava sobre os seus ombros o peso imenso de uma profunda responsabilidade.
A sua presença física era de uma enorme fragilidade, dir-se-ia quase imponderável. Quando passava por mim na rua, olhava-a com o receio das pessoas muito jovens que vêem alguém todo feito de respeitabilidade intocável. Ou era de desgostos porque tivesse passado, ou porque não ia ali nada que fosse superficialmente natural, ou fácil ou sem o artifício complexo do que é sabiamente oculto.
Fosse outro porventura o seu feitio perante pessoas da sua intimidade, foi este a impressão sensibilizada que me foi dado captar, em encontros já muito longínquos.
A minha amizade com o Senhor Delfim Luís Pires
Anos mais tarde, teria eu doze anos (portanto 1954 e daí por diante) a minha mãe dirigiu-se ao Senhor Delfim Luís Pires, conhecidas que eram as afinidades entre ele e minhas tias e avó e a consideração que tinha tido pelo meu pai, para lhe pedir auxílio nos meus estudos. Eu não tinha má vontade no trabalho, mas era comandado por uma fragilidade hipersensível a que a viuvez deprimida da minha mãe não era alheia.

A casa do Senhor Pires passou, portanto, a ser destino assíduo de visitas minhas, tendo-se a sua sala de explicações e de convívios diversos transformado na minha sala de estudo e de interessantíssimas conversas.
Julgo que a minha mãe terá pago alguma coisa por essas explicações, mas coisa muito modesta, dado que o principal da ajuda que me deu foi pela consideração e pelo sentido de solidariedade.
O Senhor Delfim Pires era um empenhado e metódico pesquisador de todos os saberes da idade moderna, de todas as disciplinas principais do conhecimento, dentro do espírito universal duma procura aberta à transcendência. Já nessa altura era muito conhecido e respeitado em Leiria, tendo-se afirmado mais tarde, no dealbar do regime democrático instaurado a 25 de Abril de 1974, como uma das figuras tutelares da comunidade espírita de Leiria, e era carinhosamente apelidado de “Pai Pires”, nome porque era conhecido em sua casa.
Vi e tive acesso à sua larga biblioteca, foi-me explicando os variadíssimos passos do seu método de busca do conhecimento, ao mesmo tempo que me ia dando, sim senhor, explicações a respeito das minhas “coisas da escola”.
Eu diria, contudo, que o mais importante que fui recebendo da parte dele, foi o desvelar de um alargado universo de interesses sem tabus, sem margens e sem inibições. Falou-me e ensinou-me de tudo, como um mestre no mais clássico sentido do termo, generosidade a que eu correspondia com grande interesse e toda a atenção.
Os temas escolares eram mais essencialmente do domínio da matemática e da língua portuguesa; mas daí facilmente se passava a uma grande largueza de temas culturais que eu estimulava com perguntas e a que ele correspondia sempre com respostas cativantes.
A moral e os seus critérios eram o paralelo condutor de todos os temas, as origens da vida e as estruturas da matéria (foi ele que me falou pela primeira vez e em detalhe sobre os átomos, as células e as moléculas); os factos da vida, o casamento, a ética dos afectos, a música (era maestro numa banda muito conhecida, por ter sido sargento músico), os domínios da filosofia, etc. tudo com a simplicidade acessível de quem é capaz de dizer o fácil e o transcendente, parando ao meio das frases para dar lugar à reflexão, ou entremeando graças, pequenos episódio raros, uma pequena anedota, e tantas expressões escolhidas que ficaram – aqui e ali – na minha recordação.
Falou-me da sua amada primeira esposa e explicou-me com interioridade sentimental como se tinha casado, depois de enviuvar, com uma mulher mais simples – e tão simpática – que eu tive o prazer de conhecer. Confidências raras para um rapazito de doze ou treze anos como eu, mas que não caíram em cesto roto, porque tudo guardei com atenção e respeito, e o grave sentimento de estar a receber de longe e do alto, uma serena mensagem de códigos seguros para o entendimento real da vida.
Outra visita que o Senhor Pires costumava ter, de que me lembro bem, era a de um senhor já de cabelos brancos, muito experimentado na pesquisa e na colheita de ervas aromáticas e plantas medicinais. Não me recordo do seu nome. Recordo sim da meticulosa paixão de ambos em analisar e discutir as características e propriedades de cada planta. E da, para mim, confusa e remota ciência das plantas recordo-me dum nome só, que ficou nos resquícios da memória, com cheiro a flores: a “inca pervinca” ou “vincapervinca” como agora certifiquei na internet!
O Senhor Pires (como era conhecido em minha casa) agraciou-me com a sua confiança e sempre que passava pelo seu modesto escritório onde trabalhava, numa recauchutagem ali numa esquina ao lado da Fonte Grande, ia cumprimentá-lo e trocar com ele breves palavras.
Tudo isto foi muitíssimo antes do 25 de Abril, estava inactivado pela polícia política o antigo Centro Espírita de Leiria.
Eu conhecia as suas inclinações espíritas, de várias coisas me falou a esse respeito, mas sem se sentir muito livre para o fazer, creio que pensando nas preocupações de minha Mãe. A meu pedido chegou a emprestar-me, por exemplo, “O Conceito Rosacruz do Cosmos”.
O livro era bastante antigo, e não não tinha nada a ver com uma organização de que mais tarde tive conhecimento, por intermédio de um colega mais velho que se associara a uma entidade residente nos EUA e dali recebia abundante material que chegou a mostrar-me, mas que não exerceu sobre mim qualquer interesse sugestivo, apesar do entusiasmo que esse colega me tentou comunicar.
Nesse tempo a aprendizagem das coisas do espiritismo era praticamente clandestina e, quando comecei a ir a Lisboa, fui algumas vezes a uma livraria semi-clandestina situada num andar de um prédio (sem montra para a rua) onde se vendiam livros dessa orientação na Rua do Salitre, e outros de temáticas semi-ocultas com grande mescla de orientações.
Outro livro também da vertente teosófica a que tive acesso foi “O Homem condenado a ser Deus”, de Félix Bermudes, livro que li com interesse. Já não sabendo ao certo se foi nessa dita livraria que o comprei.
Apesar de ter nessa altura uma vida menos estável, sempre guardei comigo e ainda o possuo como recordação. Também em relação ao seu autor recolhi entretanto referências diversas que o mostram deslocado da doutrina espírita. Na altura o livro foi interessante para mim, porque – além de estar bem escrito – esclarecia muita coisa, nomeadamente a respeito da reencarnação e tinha um longo poema doutrinário, que li com sentimento e de que nunca me esqueci.

Memórias de Leiria; o Senhor Vasconcelos (Joaquim Inácio Zapata de Vasconcelos)
Vivendo em Coimbra e nas suas proximidades há cinquenta anos não consigo dizer, em lado nenhum, que sou dali. Nasci em casa do meu avô em Cernache do Bonjardim, mas toda a apreensão do mundo e da vida se foi construindo em Leiria e no seu universo de relações pessoais e culturais, que reconhecia como fortemente estimulante e valioso.
Gente de cultura espírita era fácil de encontrar e a abordagem do assunto não estava sujeita a constrangimentos, certamente pelo elevado prestígio social e cultural de que gozavam muitos dos aderentes e participantes na vida espírita, de cujos elementos destacados ainda conheci mais alguns, já para não falar no Senhor Capitão Ribeiro e na Srª Dª Joaninha, pais de um condiscípulo meu de ensino primário, o José Jaime Fernandes.
Houve entretanto uma pessoa de grande abertura cultural que igualmente me prodigalizou a sua simpatia, o Senhor Vasconcelos, que já faleceu há muito, que era tipógrafo compositor na Gráfica de Leiria e músico (clarinetista, saxofonista e flautista) e ensaiador no Orfeão, de que eu fui membro.
Entre muitas conversas que travei com ele, saliente-se um enorme serão que passamos, acompanhados ainda por terceiro elemento, colega meu de escola e igualmente 2º tenor do orfeão (naipe ensaiado pelo Senhor Vasconcelos).
Por uma serena noite de Verão passeámos lentamente ao longo de todo o enorme “Marachão”, abaixo e acima, desenvolvendo ele uma apresentação bem detalhada de todo o conceito das ideias do espiritismo, a organização do cosmos, a reencarnação, etc.
Não me esquecerei jamais da fórmula com que deu início à longa e para mim inesquecível conversa havida:
“…Caros amigos, talvez não seja por acaso que nos encontrámos hoje, pelo que vou aproveitar, se não recusam a oportunidade, para vos falar de um assunto bastante interessante…”
Encontrei muito mais tarde o terceiro presente nessa ocasião (o meu amigo EMC), que disse nada ter retido de aproveitável dessa conversa, o que lamentei sem dramatismos, certo que para ele também chegará a hora de entender.
No que me toca a mim, devo confirmar com imensa gratidão espiritual e a maior alegria de alma, que não foi de facto “por acaso” que o Senhor Vasconcelos teve aquela generosa ideia e desenvolveu toda a sua convicta eloquência.
Tenho-o recordado com imensa fraternidade nas minhas preces e espero um dia reencontrá-lo, para passear de novo com ele, longamente, por veredas frondosas inundadas de luz, recordando com imenso carinho a fresca humidade nocturna das margens do Rio Lis, de um serão iluminado por revelações generosas e descobertas surpreendentes.
Fins de Junho de 2011 (redacção inicial, com algumas actualizações).
José da Costa Brites
Lindíssimo soneto de minha querida Tia Augusta Pereira Brites:
Feliz por ir nascer noutro lugar
Subi ao monte, aonde os olhos meus
Viram o dia já no entardecer;
Viram a luz do Sol ruborescer,
Dourados dedos a dizer-me adeus!Ia cantar alvores noutros céus,
Dar cor às rosas; vida a todo o ser.
Eu fico em treva, até amanhecer…
Até nascer em mim a luz de Deus.Com dedos de ouro e alma de luar
Feliz por ir nascer noutro lugar,
O Sol, quando se esconde, vai sorrindo!O corpo frio desce à terra mãe,
A alma feliz vai acordar além,
Cheia de luz, sorri, ao céu subindo.Augusta Pereira Brites