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É tempo oportuno para que eu revele um documento que durante toda a vida de minha mãe foi sendo conservado naquela reserva oculta das coisas preciosamente difíceis de mostrar à luz aberta da convivência. Por muitas razões de pudor sentimental mas, essencialmente, porque era objecto que despertava o eco de um enormíssimo desgosto: o falecimento de meu pai, a 15 de Dezembro de 1949. Esclareço igualmente que os papéis desta comunicação permaneceram guardados pela minha mãe junto das suas mais íntimas recordações, e que só me chegou às mãos quando adoeceu gravemente há cerca de 16 anos atrás.
A comunicação mediúnica de meu pai foi efectuada logo no dia 7 de Fevereiro de 1950 e foi facilitada pelo facto de a família se encontrar, desde os anos vinte do século anterior, intimamente relacionada com a cultura espírita.
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Vai a abrir o texto completo, transcrito com pequenas reticficações formais, a partir daquele que foi escrito pela minha mãe de forma rápida, na sua bonita caligrafia, para mim tão familiar.
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Faço seguidamente os considerandos apreciativos da comunicação e comentários respectivos, frase por frase. Peço às visitas o favor de lerem esses comentários, pois são eles, com efeito, o principal do que tenho para dizer-vos.
Encerro com as imagens digitalizadas dos textos originais, redigidos sobre velhas folhitas de escola primária, com caneta permanente de tinta azul escurecida pelo tempo.
Em 7 de Fevereiro de 1950
Oremos e meditemos!
Pequeníssimo qual verme no mundo vivente, arrebatado de devotamento e veneração, curvo-me ante mim mesmo e digo: Não sou digno. Não sou digno de ser ouvido pelo que deixei no mundo! Não… não mereço ser perdoado nesta enorme falta que tão ousado cometi! – não respondi à verdade que em grandes letras se revelava à minha compreensão, tão sonante como verbal e audível, tão sincera e imponente como os trovões anunciando a tempestade; Se não nos prepararmos nos naufrágios da vida exterior para gozar no interior da consciência à sombra do dever cumprido!
Que palpitante ensino para o rebelde que fui…! Oremos pois. Que Deus seja louvado!
O choque!… fez sofrer a minha pessoa quando já ausente do corpo… sofrer tão merecido como violenta a separação dele!!!
Ah!… Fora do mundo… homem cheio de esperanças… nessa pobre e misérrima vida, se é que vida se lhe pode chamar em comparação à que a mim, principiante, vejo desdobrar-se tão cheia e surpreendente, como se de cinco anos em ignota aldeia vivido, entrasse em luzente capital de rico império!…
A cada momento novas e fulgurantes vistas com panoramas de recreativa beleza se manifestam em face do meu frouxo entendimento! Até me sinto esquecer a vida própria!
Parece-me que vida é mais o que eu vejo do que eu mesmo! Esta fulguração de vidas, de sóis que são as almas na fusão das suas compreensões em se chocar, que vibram brilho e amor!
Choro comoções tão chocantes, sentimentos de formosa cordialidade. Mas eu embasbacado pergunto aos amigos porque tão cedo viria para o além?
Empregado subalterno aqui… notai, mas que mal pode ser comparado aí!
O que eu sinto aqui é mui superior ao que aí se sente nas mais favoráveis condições da vida.
Aquele choque tão brutalmente violento, fora nem mais nem menos o reflexo da minha negação ao chamamento que tão veraz sentia!
Arremessado para a verdade eterna afora o corpo por este servir de estorvo àquilo com que Deus quer mimosear-nos dentro dele!
Ouçamos esta voz aí para não haver esses desastres, essa forma tão chocante para nós todos! Ouçamos meigamente e à sombra do dever cumprido deixem o coração emocionar-se a favor dos destituídos desse sentimento. Desde que daí parti é este o meu mais belo momento!!
Estou a engrandecer esta pobre personalidade baseando-a no desejo de a alguém ser útil com a lição que me custou a vida e o amor espezinhado de minha mãe que tão baldadamente aos pés me expôs ; custou-me o amor da esposa suspirosa que não teve o adeus fatal!!!
Ah!… Perdoem-me… não posso falar ainda na terceira pessoa! Não me é permitido por uma grande entidade a qual me fez portador desta mensagem, como já disse, enchendo-me de regozijo por tal favor.
Entregue nas mãos de quem lhe dá passagem
para quem queira…
Bendito seja Deus receber…
Palavra por palavra, frase por frase, contudo, a comunicação do meu querido pai concentra na sua reduzida dimensão um conjunto de qualidades positivas, abre perspectivas muito belas sobre a vida depois da morte, além de ser, no meu entender, muito elegante no sentido literário e ainda plenamente fiel ao rigor da doutrina espírita.
A intuição da minha mãe acrescentou, sem nenhum preconceito literário mas com grande perceção sensível, uma pontuação exclamativa abundante. Conhecendo como conheci as pessoas que estiveram presentes na sessão espírita em questão e, muito em particular, a personalidade do médium, minha tia Augusta, tenho a consciência de que a sua convicta determinação anímica incluía uma enorme dose de afirmação espiritual. Donde, a abundância de acentuações exclamativas, intercalado o discurso aqui e ali por reticências, que devem ter correspondido a pausas meditativas na intensidade da mensagem.
Estas são as duas palavras iniciais, preciosas na sua riqueza de proposta construtiva dos valores da atitude espiritual e da predisposição intelectual:
Oremos todos, pois, e meditemos sempre em cada momento da nossa vida: o convite é como um alerta e um voto, uma determinação da vontade:”… progredir e evoluir sem cessar, tal é a lei…”
Surge logo depois o sentimento de modéstia da sua própria pessoa, das suas limitações naturais:
Tal modéstia e o sentido da autocrítica são uma tradução do rigor de obediência aos princípios essenciais da evolução pela aprendizagem, pela expiação e pelas provas de que este mundo nosso é cenário organizado e propício.
Convém esclarecer que meu pai, embora tivesse vivido num ambiente muito mais próximo da verdadeira pobreza do que da humildade remediada, tinha sido bafejado pelo convívio com pessoas de alto padrão moral, integridade de procedimentos e, mais do que isso, ilustradas com o conhecimento da doutrina dos espíritos. Daí o seu sentimento de culpa de não ter cumprido integralmente a sua tarefa.
A sinceridade de tais palavras, o profundo sentimento que as anima, nenhum relator – por muito sensibilizado e intelectualmente centrado que fosse – poderia construí-las artificialmente.
A referência explícita ao nome próprio, que não sei se é elemento frequente neste tipo de comunicações, pode aqui ser talvez entendida pela data muito recente da passagem à imaterialidade.
O relacionamento que faço tem a ver com a inflexão do discurso, que agora se centra na ocorrência do acidente, sofrido há menos de dois meses:
Vêm de seguida breves mas muito elucidativas visões e percepções qualitativas do além:
Esta “visão do céu” associo eu a uma quantidade de narrativas feitas do além por intermédio de outros espíritos que eu considero privilegiados do ponto de vista cultural e sensitivo. Que o meu querido pai tenha tido a possibilidade e as condições de – em tão pouca quantia de palavras – fazer uma “descrição” tão condizente com esse outros textos, tão empolgada e empolgante, é coisa que me causa uma espantosa admiração e uma enormíssima felicidade.
A abertura de alma prossegue, no teor que pode ser analisado na sua totalidade no texto completo, numa linguagem sintética e ao mesmo tempo poeticamente comovida:
A pergunta que formula logo a seguir parece-me de uma extraordinária importância para que avaliemos o contexto espiritual em que se desenvolve a corrente dos sentimentos expressos: o meu pai faz-nos saber, pela forma como exprime o sentido da pergunta, que se encontra acompanhado por amigos, logo, num clima de favorável acolhimento, propício a que coloque questões relativas à violenta surpresa que teve de suportar, no momento do acidente que o vitimou:
A conclusão tirada oferece-me uma visão positiva das circunstâncias que rodeavam meu pai, do ponto de vista da sua situação e do clima que o acolheu. E prossegue na descrição do ambiente celestial que o rodeia, em termos inequívocos:
Será talvez adequado referir que a vida do meu pai sempre foi de grande modéstia, sendo tão órfão que jamais conhecera o pai (falecido por doença em Moçambique para onde emigrara na busca de melhores condições de vida seguindo as passadas de seu pai – meu bisavô – o qual ali tinha vivido antes).
Era motorista de profissão e sua mãe, minha avó, vivia dos recursos da terra e o acidente mortal de viação que o vitimou ocorreu nas imediações de Coimbra.
Esta última frase ressoa em mim como um queixume, um condoído desabafo pelas condições incautas em que circulavam os motoristas nas estradas portuguesas. Meu pai, seguindo na sua mão, foi colhido de frente por uma camioneta que ultrapassava fora de mão um carro de bois, a seguir a uma curva. Ao impacto de frente somou-se o efeito – que lhe foi fatal – do impacto da carga que seguiam amontoada atrás do motorista, sem qualquer protecção. Meu pai foi por isso esmagado pelo peso de encontro ao volante e tinha a clara noção disso.
Só depois do seu falecimento a empresa, de que minha mãe recebeu durante alguns anos uma misérrima pensão sem sentido, se resolveu a colocar uma barreira entre as cargas e os motoristas que as transportavam.
E continua:
Este chamado comovente e este apelo à comoção é, não nos iludamos, feito de uma forma que nada tem de um superficial apelo caritativo imediatista ou simbólico. O nosso coração deve emocionar-se a favor daqueles que não são providos do sentimento de seguirem a obediência aos chamamentos, como o que o meu pai “tão veraz sentia”, “à sombra do dever cumprido”!…
A frase que convida à emoção foi adoptada pela minha avó, e algumas vezes a ouvi meigamente sentenciar:
Sendo eu portador de uma tão emocionante mensagem, como poderei sentir-me menos que um privilegiado das circunstâncias, alguém que foi favorecido por um testemunho tão vivo e tão intensamente sentido.
O culminar da felicidade espiritual de meu pai e a declaração do seu bem-estar face à nova situação alcançada, tem a sua expressão – com enorme contentamento para mim – na frase seguinte:
Refere depois com desgosto e arrependimento algumas das diferenças que teve com sua mãe, escusando-se a verter a mínima crítica das razões pessoais que tivera e que pudessem ser tomadas como desforço ou acinte para com minha avó Cristina. Posso referir isso com segurança, dado que foi matéria muito frequentemente abordada sendo eu criança e meu pai vivo ainda, e aludida mais tarde, em conversas de família. Questões normais do dia a dia, juízos feitos a respeito de atitudes diversas, rigor de princípios, etc.
Quase no fim, contudo, segue-se uma observação fortissimamente comprovativa da autenticidade desta mensagem, pelo que tem de secreto, de conceituosamente subentendido. Disse então meu pai:
A minha leitura deste trecho da comunicação de meu querido pai, cumula o meu coração de uma infinita ternura e o compromisso do segredo a que foi vinculado cumpriu-o de forma hulmildemente disciplinada, como era timbre da sua personalidade.
Sendo ele a falar na primeira pessoa e sendo naturalmente minha mãe a segunda (a amada “esposa suspirosa que não teve o adeus fatal” – minha mãe, estando distante do hospital onde se encontrava, não assistiu aos últimos momentos de vida de meu pai) é perfeitamente claro que sou eu essa “terceira pessoa”.
Para todas aquelas almas sensíveis que são conhecedoras dos códigos comunicativos vigentes entre espíritos desencarnados e seres ainda materializados como nós, é perfeitamente óbvio que assim é.
Considerando aqueles pormenores de certas comunicações mediúnicas que são como um detalhe revelador da autenticidade das mesmas, é este o momento precioso da comunicação de meu pai que confirma a sua invencível credibilidade:
Não sendo autorizado a mencionar um ser ainda nas primícias da sua infância, eu mesmo, para evitar a mínima interferência na vida que me competia viver, a comunicação de meu pai situa-se integralmente dentro dos critérios de respeito pelas regras e ordenações do plano da criação e desenvolvimento responsável dos humanos!…
E termina, despedindo-se de forma singela, concisa e respeitosíssima perante o Alto:
Chamo a atenção para o seguinte:
Um certo requinte de linguagem que é usada pelo meu pai não era certamente reflexo de uma aquisição recente ou efeito “celestial”.
Quer a minha avó, quer as minhas tias, embora pessoas muito modestas, usavam esse tipo de linguagem devido essencialmente à sua delicadeza de espírito e à sua capacidade de registar e exprimir emoções. A minha tia Augusta, a que era médium espírita, era uma pessoa de sensibilidade e dotes intelectuais muito invulgares.
Certo é, evidentemente, que meu pai era uma pessoa muito meigo de carácter, que se exprimia com correcção e elegância.
Lendo repetidas vezes este belíssimo conjunto de palavras e este vibrante encadeado de ideias, sinto-me reforçado na minha condição por um inquebrantável feixe de energias positivas e verdades tão claras que não necessito de provas factualmente comprováveis da sua autenticidade. Elas são por si, e na sua natureza íntima, o garante mais sólido da consoladora verdade, da luz inspiradora e da vida eterna!
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